As cidades parecem ter muralhas de concreto. As ruas são ladeadas por prédios que criam ambientes onde a temperatura aumenta, a poluição não se dissipa e o barulho reverbera. Dentre tantas atitudes a tomar para minimizar esse cenário deprimente há de se plantar árvores, singelos meios de compensar em parte nossa equivocada noção de progresso. As antigas árvores, herança das gerações anteriores, depois de muitas décadas sucumbem corroídas pelos cupins. No seu lugar pequenas mudas, frágeis e indefesas são plantadas nas calçadas. Em sua infância biológica elas não conseguem cumprir o papel ecológico de suas ancestrais e ainda enfrentam a ignorância, a covardia e a imbecilidade de nós, os ditos seres racionais. Galhos são quebrados propositalmente, mudas atropeladas por carros e deixadas a morrer de sede. Assim, metaforicamente, entendo também acontecer com as pessoas nascidas em condições adversas, sejam elas de qualquer cor, condição social ou origem. Criaturas em seu começo de vida que muitas vezes não contam com proteção, alimentação e educação necessárias. Sem isso como podem se tornar adultos completos, livres e colaboradores ativos de uma sociedade justa ? O filme “Mãos talentosas” de 2009 que conta a história de Ben Carson ajuda-nos a entender como a conjunção da proteção mínima na infância, a determinação de uma mãe solitária e a humildade através da fé podem transformar uma criança pobre, negra e frágil num neurocirurgião reconhecido mundialmente. Quando se fala em meritocracia há de se lembrar das pequenas e frágeis arvores nas calçadas. Por não se enxergar o que elas podem ser no futuro, sua depredação passa despercebida assim como é a deficiência de visão de uma criança, a falta de alimento adequado e também um mínimo de orientação aos familiares para que possam efetivamente ser pais de verdade. O filme, ainda que no limite da pieguice, mostra passagens nas quais tudo poderia ter sido diferente. Faltou pouco para Ben ser considerado idiota, inútil, irrecuperável, um pária; ou seja uma muda que nunca se tornaria uma árvore. Alguns afirmam que quem quer de verdade acaba indo em frente, torna-se um vitorioso. É fato o poder do querer mas é hipocrisia não reconhecer a necessidade de condições mínimas para que as pequenas mudas floresçam. Atribuir o mérito total ao Ben por ser um neurocirurgião de sucesso sem reconhecer os apoios e percalços ao longo de sua vida é semelhante a afirmar que a árvore centenária existe por seu único e exclusivo mérito. O discurso a favor da meritocracia não deixa de ter um viés de arrogância. Infelizmente serve de desculpa para a nossa omissão perante as pequenas mudas destruídas: “Elas não fizeram por merecer”. Será ?
( crônica publicada no Correio Popular em 24/11/2020 )