O dinheiro não sacia a fome. É o alimento que tem essa capacidade. Estamos tão imersos numa sociedade que idolatra o dinheiro a ponto de confundi-lo com o valor de fato, aquele necessário para a vida. Tanto assim que quem tem mais dinheiro naturalmente tem mais poder sobre os outros, tem maior acesso aos valores reais, enquanto a maioria não tem. Quase todo valor foi se transformando em mercadoria, com preço de venda. Compra-se saúde, educação, segurança, diversão, produtos e serviços em geral. Pode-se dizer que muitas pessoas, ou suas consciências, também estão à venda, assim como um suposto lugar no paraíso da eternidade. Mas há bons exemplos contrários. As Santas Casas tiveram origem em Portugal, no ano de 1498, por iniciativa de um frei da Igreja Católica com apoio da monarquia e são consideradas pioneiras no mundo como organizações não governamentais. Trazidas para o Brasil, se espalharam com o apoio da Igreja, a dedicação dos médicos das cidades, o interesse dos governos e patrocinadas por empresários dispostos a distribuir, submissos à sua própria fé, uma parte da fortuna acumulada com o trabalho alheio. A partir da constituição de 1988 elas passaram a atender pelo SUS, o qual responde atualmente pela maior parte dos seus custos. Apesar de contar com dirigentes abnegados que assumem como missão de vida a administração dessas casas santas, é notória a sua decadência, seja pela crescente complexidade da medicina ou pela dificuldade em se angariar fundos e voluntários. Esse fenômeno se constata no terceiro setor como um todo, as atuais OSCs, antigamente chamadas ONGs. Se é difícil convencer pessoas a doar o dinheiro que lhes sobra, muitas vezes recebendo em troca um reconhecimento exagerado; é muito pior convencê-las a doar um valor mais precioso: o tempo. Afinal, tendo em vista a crescente expectativa de vida e a consciência no trato dos próprios filhos, as pessoas precisam de maior formação escolar, demoram mais para iniciar nas profissões, trabalham mais intensamente, são mais exigidas no convívio com os filhos e devem permanecer ativas até a velhice para suportar seus custos. Se antes havia jovens que conciliavam trabalho remunerado e voluntariado, hoje, infelizmente, grande parte dos voluntários nas OSCs é formada por pessoas idosas. Os mais jovens têm praticamente todo o seu tempo tragado pelas atividades para obter dinheiro e pelo parco convívio com a família. Por outro lado, pesquisas indicam que entidades beneficentes chegam a ser mais eficazes do que empresas equivalentes baseadas no lucro. Sim, a atividade beneficente pode agregar mais valor do que uma organização voltada para o lucro. Ao se deixar de lado o ímpeto da ganância e o grilhão do ego, o trabalho solidário sem recompensa monetária, é uma experiência libertadora em relação à precificação da vida. Tribos de povos originários, por exemplo, trabalham coletivamente, compartilhando os valores obtidos e sem acúmulos exagerados além do essencial para a vida. O mote é gerar e desfrutar em comunidade. A economia baseada na competição traz grandes avanços para o conforto em geral, isso é fato incontestável, mas também contamina a sociedade, impondo-lhe o egoísmo onde poderia prevalecer a solidariedade. Praticar o voluntariado, oferecer conhecimentos e tempo ao próximo, demonstra a dignidade de quem faz e restaura a de quem recebe, reequilibrando os princípios de humanidade. Estar voluntário é deixar um pouco de lado o “ter” para assumir melhor o “ser”, o ser humano.
Carlos Lopes
crônica publicada no Correio Popular - 9/maio/2024