Lembro do meu pai aconselhando os vizinhos. Os sinais eram claros. As ameaças só faziam aumentar. Muitos construíram muros em volta das cidades para impedir invasões de estrangeiros, mas estes se mostraram inúteis. Era preciso trazer alimentos de fora, de cada vez mais longe. As pessoas passaram a dizer apenas coisas ruins umas das outras. O diálogo apodreceu. Todos afirmavam ter razão, mas não havia mais qualquer racionalidade nas palavras. Outros tantos se armaram com o que estava disponível. Argumentavam que cada um deveria cuidar de si mesmo. Era preciso garantir a segurança contra os outros. Então, veio uma doença misteriosa que passava sobre os muros e não podia ser abatida. Disseram que era alguma praga trazida por um inimigo, a culpa era dele. Infelizmente muitos nos deixaram. Meu pai, já idoso, então, teve a ideia de construir uma pequena comunidade, uma tribo nômade, na qual algumas pessoas poderiam viver em paz, com menos recursos mas com mais vida. Muitos riram dele, pensaram que era louco. Pode ser, mas ele não se importou, seguiu adiante com seu plano. Tempos depois os sinais mais fortes do desequilíbrio começaram, ninguém mais estava seguro, a não ser aquela pequena comunidade peregrina criada pelo meu pai. Se hoje eu posso compartilhar essa história com vocês é porque eu tive um pai sábio, que aceitou sua pequenez diante do universo, sonhou grande e trabalhou com humildade e coragem pelo futuro possível. Quando o pior passou a comunidade errante, desprovida dos luxos, estava em terra firme, de novo. Todos então agradeceram a loucura salvadora do meu pai Noé.
Carlos Lopes
crônica em podcast no canal spotify carobelopes
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