Quando cursava engenharia, na década de 70, me lancei aos textos de Franz Kafka, Machado de Assis e George Orwell. Diferentes estilos, mas todos mestres em mostrar o ser humano em suas entranhas mais profundas. Percebo, na atualidade, os preconceitos reacendidos como aquela maçã arremessada contra Gregor Samsa, o caixeiro viajante dedicado que acorda um dia aparentando ser uma barata no estupendo conto “A metamorfose” de Kafka. A tolerância aos insultos e as palavras de ódio, hipocritamente escondidas sob o falso pretexto da liberdade de expressão, apodrecem a sociedade como se fossem a fruta nas costas de Gregor. Sem falar na revolta daqueles que anos atrás prosperaram como nunca em seus negócios, ou negociatas, e agora vociferam pelo combate à corrupção. Quantos desses eram, e ainda são, cúmplices ? Eles se assemelham a Bentinho, da obra machadiana “Dom Casmurro”. Fracassado, na velhice, ele transforma seu amor por Capitu em desprezo, perdido que está em seus pesadelos de traição baseados em interpretações, indícios deturpados de adultério, sem provas. Acreditam os “bentinhos” de hoje que o ódio à antiga musa se justifica e se basta, eximindo-os, assim, de qualquer responsabilidade. Afirmam sua completa inocência, toda a culpa é dos outros, é de Capitu. Para compreender o cenário mais abrangente atual recorro ao livro “1984”de George Orwell. Publicado pela primeira vez em 1949 essa obra magistral expõe uma sociedade fictícia do futuro na qual há um líder máximo, o famoso grande irmão, que se comunica com a população através de telas e todo livro era proibido. Cada pessoa deveria exercer sua atividade conforme estabelecido pelo governo, sem privacidade ou liberdade. A vigilância era constante, brutal e o recurso da tortura era muito utilizado para doutrinar eventuais rebeldes. Winston, personagem central de “1984”, sofre muito, pois tem consciência, questiona; por isso busca livros, não se conforma com as informações manipuladas das telas , algo muito semelhante às atuais redes sociais. Diversos pesquisadores entendiam que Orwell pretendia desconstruir o socialismo com seu texto; no entanto, sua decepção estaria ligada aos que usurpavam das ideologias e estabeleceram regimes totalitários , como fez Stalin. Um trecho do livro “1984” embasa essa interpretação: “Mais tarde, no século XX, vieram os totalitários, como eram chamados. Os nazistas alemães e os comunistas russos. “ . Portanto, é preciso separar nosso julgamento sobre ideologias do julgamento daqueles que as utilizam , algumas vezes com dolo. Um exemplo interessante são as doutrinas religiosas, na absoluta maioria voltadas para o bem. Alguns aproveitadores se utilizam delas traiçoeiramente para obter poder e dinheiro perante dóceis seguidores. Seria um equívoco julgar toda a doutrina pelo desvio de alguém que as pratica. Levado ao extremo esse raciocínio, até mesmo a democracia poderia ser condenada. Pois bem, atualmente radicais retrógados espalham medo, insuflam ódio contra adversários e instituições, como se esses desejassem de fato destruir o país. Preferem enfraquecer os alicerces do estado de direito para, com isso, eventualmente, implantar um regime autoritário, exatamente o cenário nefasto descrito por Orwell. Indício sutil disso é o desprezo que esses radicais demonstram quanto ao acesso aos livros, tidos como ameaças aos clubes de tiro. Os livros não respondem todas as nossas dúvidas, não são infalíveis e nem trazem verdades incontestáveis. No entanto, ajudam a se conhecer alternativas e se elaborar caminhos de justiça e solidariedade para a sociedade. Decididamente, cada biblioteca pode ser considerada um arsenal em defesa da democracia, um campo minado contra a barbárie.
( crônica publicada no jornal Correio Popular em 19 de julho de 2022 )