Legítima defesa – crônica de Carlos Lopes – junho 2022
Dirigia na marginal Pinheiros, lá pelos idos de 1982, no meu não possante Chevette. Numa curva de viaduto, havia um carro parado prestes a partir. Buzinei alertando o motorista e segui; no entanto, ele julgou que eu estivesse em atitude agressiva e resolveu me perseguir, me alcançou e jogou o carro contra o meu. Para evitar o choque, desviei entrando no acesso do viaduto que cruza o rio. Desde então, procuro oferecer um gesto conciliador quando ocorre qualquer mal-entendido no trânsito. Parafraseando conceito legal, adotei a tática inspirada na legítima defesa putativa. O nome é esdrúxulo, mas o conceito é muito interessante. Os experts em direito nos ensinam que a pessoa pode agir para se defender de iminente agressão, mesmo que, para isso, precise usar recursos extremos. Quando participei do Tribunal do Júri de Campinas vivenciei caso assim. Um indivíduo tomava suas pingas num bar e sempre ameaçava de morte o proprietário cuja casa era grudada ao estabelecimento. Numa noite, o bêbado encontrou o bar fechado, foi então incomodar o proprietário e fez menção de estar armado. O proprietário, mais rápido, deu-lhe um tiro. O bêbado não estava armado e, caído no chão, falou e, sobrevivente que foi, repetiu em depoimento no tribunal: “ Dá mais um “. Não houve segundo tiro, o que embasou, com maior convicção ainda, a tese de legítima defesa putativa, sabiamente pleiteada pela própria Promotoria. Aprendi muito servindo no Tribunal, assim também como mesário em diversas eleições. No início com voto manual, cuja contagem das sessões eleitorais dessa região da cidade ocorria no Regatas. Trabalho longo, exaustivo e muito vulnerável cuja confiabilidade dependia da dedicação de voluntários e da constante vigilância dos partidos. Erros, com ou sem dolo, existiram e podem ter deformado resultados pelo Brasil afora. Quando surgiram as urnas eletrônicas, as votações ficaram mais seguras e eficazes. O voto não dependia de alguém interpretar um papel marcado pelo eleitor e nem a contabilidade de milhares de escrutinadores. Passados tantos anos, surge uma desconfiança em relação às urnas eletrônicas. Alguns passaram a atacá-las, sem, contudo, apresentar provas, sequer evidências. Cada urna é independente, não conectada à internet e emite listagens impressas. Os partidos sempre puderam contabilizar dados, urna por urna, desde a implantação do sistema. A atual desconfiança parte da perspectiva de que alguém ou alguns, usando de dolo, estariam burlando centenas ou milhares de urnas para prejudicar algum candidato. A dúvida sobre a soma dos votos numa sala fechada não se sustenta. Portanto, concluo, esses radicais pressupõem um crime iminente contra seus interesses e pleiteiam equivocadamente, assim, o direito à legítima defesa putativa. Insinuam, inclusive, fazer uso da força, como fez o ex-presidente dos EUA, agora prestes a ser julgado pelos crimes que notoriamente cometeu. Nenhum sistema é imune a falhas; por isso, medidas de vigilância são bem-vindas. Entretanto imputar dolo infundado é manobra política e desestabilizadora. A tecnologia brasileira criou um sistema brilhante que não é adotado em outros países, no meu entender, por preconceito ou interesses inconfessos. Tomara que todos os eleitores brasileiros, com consciência e liberdade, continuem a utilizá-lo contra qualquer arroubo de totalitarismo, aí sim, como legítima defesa putativa da nossa democracia.
(crônica publicada no Correio Popular em 29 de junho de 2022 )