Confesso que apenas na maturidade consegui compreender algumas obras supostamente voltadas ao público infantil. Uma delas é “O pequeno príncipe” de Saint Exupéry. Cheia de simbolismos, a história gira em torno de um aviador acidentado no deserto e um menino, em trajes de príncipe, que aparece misteriosamente fazendo perguntas. O aviador, que se considera um desenhista frustrado, sente-se reconfortado, pois seu desenho de um chapéu amassado é compreendido pelo menino . Trata-se, segundo ele e o menino, de uma jiboia que teria engolido um elefante. A aparência externa é de um chapéu, o resto é imaginação. Essa cena tem muitas interpretações, mas atrevo-me a lançar uma metáfora percorrendo o desenho em formato de jiboia. No início da nossa vida, o nosso campo de atuação é estreito. Não sabemos falar, andar, comer sozinhos e até ir ao banheiro. Somos, literalmente, inúteis e ,no entanto, somos valorizados, na maioria dos casos. Representamos o futuro e raramente um adulto tem coragem de afrontá-lo. Com alguma ajuda e muito esforço próprio, saímos do chão, cambaleantes, damos passos aplaudidos pela torcida a favor. Até mesmo as besteiras que fazemos ganham elogios. Estamos no primeiro terço da jiboia da vida, no pescoço estreito que interliga a cabeça e a barriga . A infância, ainda mais nos tempos atuais, passou a ser o paraíso pelo ponto de vista dos adultos. Pretende-se que as crianças se sintam sempre como se estivessem num parque de diversões. Isso demonstra muito mais os desejos dos adultos para eles mesmos. Em todo caso, o tempo vai expandindo nosso campo de atuação: muitas dependências físicas vão sendo superadas, outras tantas permanecem. Na adolescência, ousamos ampliar espaços e fazemos coisas que incomodam os adultos e podem até comprometer o futuro. Com o tempo, chegamos ao início da barriga da jiboia. Cedo ou tarde, a realidade se apresenta e alcançamos o incomodo estado de responsabilidade. Se nada fizermos, para a maioria de nós, aquele espaço de atuação da fase adulta nos será cobrado. Temos de preencher essa fase com algo que seja valorizado pela sociedade a ponto de ela nos reconhecer e financiar. Infelizmente no mundo movido a dinheiro, trabalhos não remunerados são desprezados, assim como a rosa, tão bem cuidada pelo pequeno príncipe, que é desprezada pelo personagem banqueiro. Tudo deve ter seu preço; assim, o mercado de trabalho compra nosso tempo até que estejamos quase esgotados, em vias de nos tornarmos dispensáveis. Começa o terço final da jiboia, deixando para trás trabalhos executados, muitos ocultos e tornando-se cada vez mais obscuros, anônimos. As restrições físicas retornam. Os movimentos do corpo se restringem e as letras desses aparelhinhos eletrônicos diminuem drasticamente. Nosso campo de atuação, aos poucos, declina, vamos nos restringindo. Os sonhos de infância se tornaram ou não realidade e agora, na maturidade, são apenas lembranças que nos ocorrem. Não somos mais encantadores como na infância e nem tão necessários como na fase adulta. Cada vez, mais , nos tornamos dependentes da misericórdia de uma sociedade materialista que nós mesmos alimentamos. Não é à toa que nessa fase desejamos nos aproximar dos netos. Eles não têm preconceitos como os adultos. Aos poucos, vamos nos convencendo de que a jiboia não precisava ter engolido um elefante. Infelizmente, seja para necessidades básicas ou pelo nosso ego, ávido pelos carinhos materiais, somos empurrados para conquistar dinheiro . A vida merece mais respeito. Não deveríamos vender nosso tempo pelos critérios absurdos do mercado. Tomara todos possam refletir sobre a vida, como proposto em “Pequeno príncipe”. Afinal, pensando bem, tempo não é dinheiro.
( Crônica publicada no Correio Popular em 6 de agosto de 2022 )