O premiado filme “Estrelas Além do Tempo”, baseado em fatos da década de 60 a respeito de um grupo de mulheres negras trabalhando com cálculos na NASA, além de expor o racismo e machismo, mostra a introdução dos computadores transformando processos e o trabalho das pessoas. Antes eram necessárias centenas de calculistas trabalhando continuamente, depois alguns especialistas capazes de programar máquinas. Vivenciei algo semelhante durante meu curso de engenharia e início de carreira. O ser humano, senhor e servo de si mesmo, domina tecnologias que mudam as exigências para ele mesmo. Assim foi desde o controle do fogo, da invenção da roda e muito depois da máquina a vapor. Mas seria ele de fato autor e protagonista de sua história? A ciência no século 20 constatou que o livre arbítrio, a liberdade de decisão, é um conceito abstrato e discutível. Fatores externos poderosos além de processos eletroquímicos no cérebro vinculados às diretrizes definidas pelo nosso próprio DNA influenciam, e muito, nossas decisões e ações. Julgamos controlar nossas vidas e os rumos da sociedade quando na verdade estamos num simples barquinho a remo neste vasto oceano da natureza. Seria o avanço da tecnologia meio de fortalecer a perpetuação da espécie sob a ótica biológica? Vejamos alguns indicativos. Por milhares de anos, a natureza fez com que o homo sapiens se defendesse das doenças e garantisse as próximas gerações através de proles ambiciosas. Até a metade do século passado, era comum famílias com mais de uma dezena de irmãos. A mortalidade infantil, a necessidade de apoio na eventual velhice e a crença religiosa incentivavam a expansão da população. A economia movida a crescimento contínuo combinava com isso, principalmente no pós-revolução industrial: mais operários, maior produção e maior consumo. Entretanto, após duas guerras mundiais e decorrentes tecnologias adaptáveis ao dia a dia, acelerou-se ainda mais a mudança social. A ciência dos hormônios, a necessidade da introdução da mão de obra feminina devido às mortes dos homens nas guerras e a mudança cultural pela igualdade de gêneros impulsionaram o controle da gravidez, reduzindo assim a taxa de natalidade a partir da metade do século passado. Ao mesmo tempo a penicilina, outros fármacos e vacinas se popularizaram, reduzindo mortes por doenças e ampliando a perspectiva de vida da população. Muitas outras causas ocorreram, mas o fato é que as famílias foram reduzindo seu tamanho, menos era melhor. No linguajar do mercado, parecia haver uma tendência ao equilíbrio entre oferta e procura por seres humanos, certo? No entanto, a velocidade para dispensar mão de obra física foi muito maior que a desaceleração da população. Ainda pior, os mais vulneráveis continuaram a ter mais filhos enquanto as exigências aos trabalhadores se sofisticavam. No começo do século 20, prevalecia o trabalho físico, apenas 3% dos empregos exigiam capacidade cognitiva, conforme James Flynn, enquanto hoje em dia são 35%. Essa migração se confirma pela lista de bilionários das últimas décadas. Os magnatas digitais concentram cada vez mais dinheiro e poder internacional, o emprego se concentra. E o excedente de população ficaria no limbo sem chance de trabalho e sustento, conforme previsto por Yuval Harari? Percebe-se que o foco da sociedade de consumo não é o seu próprio equilíbrio biológico, portanto é natural que a natureza aja. Talvez a pandemia do coronavírus seja uma dessas manifestações, transformando nosso cenário de ficção científica anterior num filme de catástrofe no qual nós, meros atores coadjuvantes, estamos sem roteiro prévio a seguir por essa jornada nas estrelas. Para continuar , é preciso ter humildade, coragem de aprender e se reinventar, assim como fez aquela equipe feminina da NASA. Parafraseando e completando a icônica frase dita na Apolo 13: “Houston, we have a problem” and we are the solution !
( crônica publicada no Correio Popular em 7 de maio de 2021 )