Humanidade – crônica de Carlos Lopes – fevereiro 2023
É provável que a maioria das pessoas não saiba o que é uma régua de cálculo. Trata-se de um instrumento manual que, através de guias deslizantes, com graduações logarítmicas, permite calcular de forma mais rápida que o método manual. Inventada em 1622, ainda era utilizada quando entrei no curso de engenharia em 1975. Logo depois, começou a se disseminar, no Brasil, a calculadora portátil eletrônica com a qual terminei a graduação e que me acompanhou por muitos anos em minha carreira. Soa exótico, aos jovens de agora, imaginar que cálculos complexos eram feitos à mão, inclusive no começo da corrida espacial. O brilhante filme “Estrelas além do tempo”- 2017 - de Theodore Melfi, retrata o grupo de mulheres negras que fazia cálculos à mão para a NASA, antes da introdução dos computadores. Ao longo do tempo os saltos tecnológicos foram exponenciais e, vez por outra, escritores e cineastas se lançaram a vislumbrar quando a criatura máquina iria suplantar seu criador. De alguma forma, colaborei com isso, pois, por décadas, projetei máquinas com recursos automatizados. Muitas delas, é fato, mais seguras e fáceis de operar que as anteriores. Para minha satisfação, todas foram bem recebidas pelos operários que se livraram de perigos e trabalhos cansativos. Houve tempo , ainda no século passado, que se previam fábricas sem iluminação, pois os robôs operariam sozinhos com supervisão mínima. Mas o tempo de Henry Ford e seu famoso carro de cor única foi deixando de ser a regra e grande parte da produção teve de se flexibilizar. Era preciso oferecer produtos diferentes para pessoas diferentes. Daí ocorreu a diversificação, desde produções com grande automatização, mistas ou manuais auxiliadas por equipamentos. A robótica permite flexibilização, mas o ser humano ainda tem, ou tinha, um trunfo: saber pensar. Testemunhei a aposentadoria da prancheta manual e a chegada dos desenhos feitos diretamente no computador. A arte e a ciência migravam de plataforma, mas ainda sob o comando do ser humano. Estamos agora iniciando a era da inteligência artificial, a máquina também aprende, resolve problemas, toma decisões, ou numa palavra: pensa. Em breve, a previsão de Yuval Harari, escritor do livro “Sapiens”, será fato: teremos legiões de não empregáveis. Muito diferente das duas primeiras revoluções industriais, quando a mão de obra era muito necessária, o que permitiu associações de trabalhadores para se defenderem, agora nos encontramos na iminência de nos tornarmos apenas consumidores. Mas como será viável isso se o trabalho humano, meio de se ganhar dinheiro, tende a desaparecer ? Algoritmos, cada vez mais evoluídos, permitem automatizar as atividades pensantes, como uma análise de imagem de um exame médico, uma petição judicial, uma tradução, a pilotagem de carros, aviões; e até o texto dessa crônica poderá ser executado por computadores! Como o leitor diferenciará? A propósito, no futuro existirão leitores? Nossos antepassados, quando “saíram do paraíso”, tomando ciência da própria vida e sua finitude, iniciaram o caminho do saber e o usaram para se multiplicar, preservando a espécie. O desafio agora é diferente, mas não menos desafiador. A inteligência artificial irá promover qualidade de vida para todos os mortais, ou a maioria destes será apenas um incômodo para os ricos amortais, que vão preferir preservar os recursos do planeta apenas para si próprios? Existe algo que a maioria dos humanos possa fazer para não ser desprezada ou sofrer algo ainda pior ?
Publicada no Correio Popular em 16/02/2023