Gota d'água

Um amigo postou pergunta pertinente ,na rede social, questionando o que ele poderia fazer para interromper a guerra, promover a paz. Sem dúvida a influência de cada um, isoladamente, num conflito que ocorre do outro lado do mundo, parece algo impossível. Será ? Pois bem, para cada consequência, ensina a ciência, há de se pesquisar as causas. No atual conflito entre Rússia e Ucrânia, identificam-se interesses de poder geopolíticos, econômicos e também preconceitos culturais entre povos, estes últimos, fatores fundamentais para sustentar conflitos. Os sentimentos de ressentimento, ódio e desejo de vingança de uma população podem ser resultado da junção de milhares de brigas íntimas, grande parte originada dentro das próprias famílias, ou provocadas por fatores externos, como a violência inter-racial . A contaminação entre indivíduos, nos ensina Freud em seu livro “Psicologia das massas e análise do eu”, citando William MacDougall , nomeada contágio emocional, ocorre quando “sinais percebidos de um estado afetivo são capazes de provocar automaticamente o mesmo afeto naquele que os percebe”. Em outro trecho afirma que  “Os sentimentos mais grosseiros e mais simples têm maiores probabilidades de se difundir dessa maneira na massa”, inclusos raiva e ódio, sentimentos viscerais, primitivos . Transpondo isso para o ambiente nuclear, quando, um átomo se desintegra, afeta outros ao seu redor e quando se alcança a massa crítica, ocorre uma reação com enorme poder de destruição, como a explosão atômica ou o vazamento radioativo na usina nuclear de Chernobyl ,em 1986, no território da Ucrânia. Portanto, se a guerra é semelhante a essa reação em cadeia, podemos deduzir que a paz não é resultado da inanição, da passividade,  se não da harmonia preventiva construída entre energias conhecidas e respeitadas. Caso contrário, ao ser disparado o processo belicoso, ele se auto alimentará até o caos.  Assim,  é preciso prevenir o conflito de forma perene com mais inteligência e não apenas com arsenais de destruição. O poder militar tem peso ,sim, mas nem sempre equilibra a negociação. As tentativas frustradas de ideologias políticas coletivas em alguns países jogaram o mundo numa corrida consumista desde o final do século passado. As filosofias de utopia foram ofuscadas e brilharam os planos de eficácia pelo lucro das grandes corporações. No entanto, esse progresso material não promoveu o sonhado equilíbrio econômico e nem a tecnologia supriu as lacunas existenciais.  Existe maior quantidade de produtos no mundo, mais dinheiro e cada vez menos equidade, ou seja, vivemos num desequilíbrio crescente. Mas qual seria o limite dessa “massa crítica” da humanidade a partir da qual a barbárie prevalece ? Na década de 70, tive o privilégio de assistir à “Gota D’Agua”, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes,  com a Bibi Ferreira. Baseada numa tragédia grega de Eurípedes, a peça teatral mostra uma mulher à frente do seu tempo, Joana, que é agredida, abandonada, traída e humilhada pelo marido Jasão, a tal ponto de ela, como vingança,  enlouquecida de amor e ódio, matar seus dois próprios filhos e se suicidar. A plateia ,enfeitiçada, ouvia Bibi cantar : “Deixe em paz meu coração / Que ele é um pote até aqui de mágoa / E qualquer desatenção, faça não / Pode ser a gota d'água“. Os manipuladores do poder, poucos mas ardilosos, conhecem isso muito bem e não se acanham em distribuir discursos que acirram os ânimos, sustentam ódios, despertam paixões e nomeiam culpados. Criam cenários e versões que despertam sentimentos ruins nas massas, os quais podem desencadear e sustentar conflitos maiores. Apoiar líderes tiranos é ser cumplice de suas aberrações. Portanto, retomando a pergunta oportuna de meu amigo  citada no começo dessa crônica, se, isoladamente, podemos fazer pouco pela paz, nosso maior desafio é saber agir coletivamente e com sabedoria. Para isso, penso assim, cada um deve se perguntar se sua atitude é como gota de água, que mata a sede de justiça do próximo, ou será aquela que fará seu pote de mágoa transbordar.


( crônica publicada no Correio Popular em 9/3/2022 )