O sol me animou a sair nessa domingo gelado, apenas uma rápida passagem na farmácia. Quantos miseráveis sofreram de fome e frio nessa noite ? Comprei o colírio caríssimo o qual me evita ficar cego. Existem muitos tipos de dependentes, mas me sinto pequeno perante aqueles que sequer sabem de suas doenças e tantos outros para os quais o único remédio é apenas sua própria paciência. Andei uma quadra a mais, o céu azul profundo e as andorinhas voando harmoniosamente mereciam plateia, mesmo que solitária. Na calçada ao chão encostada numa árvore e próxima a um container de lixo encontro um quadro muito desgastado com a imagem antiquada de Cristo. Objetos materiais podem ser muito representativos para as pessoas. O que terá motivado o descarte ? Teria sido o desgaste natural da figura , a mudança de móveis da sala ou o desanimo e a perda da fé ? Quando era pequeno e sobrava algum pedaço de pão, ensinavam os mais velhos a beijar o que seria descartado no lixo. Seria uma reverência ao pão consagrado mas também um tentativa indireta de nos sentir isentos da fome alheia. Daquele modo não fora o nosso pequeno pedaço de pão que faltou ao faminto, estávamos isentos de culpa. Lembrei-me da encomenda que recebi ontem. Era um fone de ouvido que infelizmente tinha suas almofadas desidratadas e esfarelando. Corri ao computador para providenciar a devolução mas, curioso, testei o produto. Funcionava perfeitamente. Conclui que a empresa iria recebe-lo de volta e jogaria no lixo apesar de ainda funcionar. Eu tive a oportunidade de honrar com os materiais, energias e principalmente com quem produziu aquele fone. Contatei então o fornecedor pois cabia sim uma advertência. Para minha surpresa a atendente me pediu desculpas e ofereceu um bônus que sequer eu tinha pedido. Julguei justo o acordo. Eles prezaram o cliente, minimizaram eventual prejuízo financeiro e de imagem, eu pude defender quem gerou aquele valor e evitei o desperdício inconsequente. Produzi então, em casa, novas almofadas costuradas à mão. Ficou estranho, nada glamoroso mas funciona bem e ganhou história. De fato aquela imagem do Cristo na sarjeta ao lado do lixo pode representar muitas coisas. Talvez passe despercebida pelos donos de cachorros mimados espalhando seus dejetos pelo caminho. Quem sabe seja considerada desde apenas um entulho a mais até uma heresia, afronta à fé em Deus. Considerei tirá-la de lá mas me convenci de que se fosse realmente Cristo encarnado Ele ficaria ao lado do lixo, próximo aos que sofrem doenças e fome por não terem um pouco do dinheiro que sobra nas mãos de poucos. Quem seria digno de Lhe oferecer melhor morada ?
( crônica publicada no Correio Popular em 29/08/2020 )