Pêndulos

O cigarro fazia parte obrigatória dos filmes de Hollywood, principalmente no pós segunda guerra mundial. Afinal toda cadeia produtiva do fumo, ampliada para abastecer os combatentes, exercia poderoso lobby para continuar ativa. Demoramos muitos anos para derrubar a farsa de que fumar não faz mal à saúde. Durante os anos 70, quando eu era jovem, fumar era sinônimo de charme e amadurecimento. E como, segundo pesquisas, noventa por cento dos fumantes adquiriram esse vício durante a adolescência,  naquela época havia propaganda maciça mostrando o cigarro como um símbolo do sucesso. Confesso que tentei fumar, mas, felizmente, achei horrível. Foi uma tentativa inútil de parecer mais velho, me enturmar com os colegas e impressionar as garotas. Fracassei no vício, ainda bem. Esse impulso de fazer parte da turma e compartilhar valores, bons e maus, ocorre durante toda a vida, inclusive na maturidade. Dentro dessa lógica, fiquei curioso sobre os acampamentos ocorridos frente a quartéis nos últimos tempos e fui pesquisar. Diversas entrevistas gravadas dos participantes traziam indícios de suas motivações, muito além de qualquer tendência política.  Os depoentes eram pessoas maduras, tinham disponibilidade de tempo e se sentiam bem estando juntos, compartilhando aquela aventura cotidiana e os discursos contagiantes. Lembrei-me, então, do livro “Psicologia das massas e a análise do eu”, no qual Freud aplicou os conhecimentos da Psicanálise para compreender grupos de pessoas. Segundo o texto, as singularidades dos indivíduos desaparecem nas massas e cria-se um sentimento de poder invencível que permite a cada indivíduo se entregar a instintos que individualmente seriam refreados. Nessa situação, cada um se livra de seus recalques, ou seja, seus limites morais, solapando, inclusive, juízos de responsabilidade. “Na multidão, todo sentimento, todo ato é contagioso, e isso em grau tão elevado, que o indivíduo muito facilmente sacrifica seu interesse pessoal ao interesse coletivo”. Isso é válido para um bando de jovens fumantes, uma torcida organizada, uma seita fanática e também para quaisquer grupos de adultos com diferentes carências.   Mas, reflito eu, por que pessoas experientes não recusaram o discurso extremista e beligerante ? Seria a narrativa suficientemente plausível ou foi apenas repulsa à realidade ?  É fato que o mundo tem se deparado com sinais de esgotamento. O futuro, muito diferente de décadas atrás, se apresenta cada vez mais sinistro; a ciência demonstra que a humanidade não pode se explorar e nem esgotar o planeta como vem fazendo. Por outro lado, muitas crenças, antes divulgadoras da vida eterna e motivadoras para suportar sacrifícios, passaram a tratar dos egos dos fiéis, convencendo-os que, se cumprirem alguns requisitos, a vida terrena será plena. Essa mesma fé deturpada, o alicerce das certezas inquestionáveis, serve para combater a ciência que procura apenas diminuir dúvidas sobre a realidade, mas nunca atinge a perfeição nessa busca. Os que se consideram superiores, seja pela convicção ideológica , religiosa, pelo padrão social ou outros critérios; percebem como ameaça,  para si mesmos ou para os seus, situações de:  não crescimento econômico, diminuição dos recursos, redução do padrão de vida e solidão, mesmo estando na multidão. Convenhamos, é mais cômodo se esquivar de eventuais responsabilidades e atribuir culpas apenas aos outros, algo muito facilitado pelas redes sociais. Os conhecidos, então, se identificam através dos sentimentos contidos em narrativas, muitas delas falsas,  o contágio se expande e gera atitudes agressivas. Mas, a ação, virtual ou real, exercida por um coletivo não pode se desvincular da atitude de cada um de seus participantes. Se aceitássemos inocências individuais nas hordas que propagam, incitam e praticam ilegalidades, a barbárie estaria justificada e seria inimputável. Afinal, num exemplo extremado, quem replica vídeos de pedofilia não tem parcela de cumplicidade com o abuso de menores? A cura para a alienação coletiva é, contraditoriamente, um processo individual , lento e difícil, pois as ameaças reais e as carências humanas permanecem. Além disso, cada movimento extremista desperta ímpetos contrários, como se fosse a oscilação de um pêndulo. A pergunta não é em qual extremidade o pêndulo deveria parar, e sim: como abolir ódios, respeitar contraditórios e fazer a humanidade evoluir ?

Carlos Lopes 

Crônica publicada no Correio Popular em 2 fev 2023