Os genes geniosos

Isso vai causar polêmica, eu sei, afinal somos criaturas pensantes e temos dificuldade em nos enxergar como meros coadjuvantes do universo. Conforme Richard Dawkins, renomado cientista autor do livro “O gene egoísta”, sob o ponto de vista biológico, todos os seres viventes são máquinas de sobrevivência individuais para os seus genes. É interessante notar que, enquanto os seres humanos podem  viver décadas, seus genes podem existir por milhares ou milhões de anos. Por outro lado, para perpetuar os genes de espécies complexas, não bastava aos genes contar apenas com indivíduos isolados. A ciência demonstra que a colaboração entre membros da mesma espécie é essencial. Isso pode se verificar na relação entre os seres, assim como dentro de cada corpo de cada um deles. O pesquisador brasileiro de neurobiologia Miguel Nicolelis se convenceu que o cérebro humano, com mais de 86 bilhões de neurônios, é “uma orquestra sem maestro”, ou seja, nossas ideias e atitudes são processadas através de uma evoluída democracia biológica. Talvez isso explique por que quanto maior é o conhecimento acumulado pelo indivíduo e sua respectiva capacidade de reflexão, mais complexo deve ser tomar decisões. Como ocorrem no cérebro, em frações de segundo,  a consulta aos dados, a criação e confronto entre alternativas para, enfim, se chegar a uma decisão e respectiva ação? Convenhamos, no âmbito coletivo, a complexidade se amplia exponencialmente. Tanto assim, que a democracia exige maior esforço de cada cidadão, seja para buscar alternativas, debater,  tolerar o contraditório e até, por fim, aceitar as decisões da maioria. Para piorar, nossos egos não nos dão trégua e tentam nos convencer que cada um de nós é o único centro do universo. Desde cedo, para sobreviver, as crianças são centradas apenas em si mesmas, choram desesperadamente, obrigando os outros a atender seus desejos ou, em tática oposta, sorriem submissas para, assim, cativar simpatias e também angariar benefícios. Ao crescerem, as pessoas deveriam usar menos essas estratégias, ou não?  Houve tempo, na minha infância, no qual era comum às crianças ouvirem que elas “não tinham querer”; portanto deveriam calar a boca e obedecer ordens. De fato, era muito conveniente para os pais, pois exigia deles menos conhecimento e dedicação. Aliás, o poder da hierarquia, tão idolatrada naquela época para mim não saudosa, deveria sempre ser fruto apenas do grau de responsabilidade de quem orienta e não da capacidade de provocar sofrimento aos outros.  Um bom exemplo de autoridade justa e oportuna é da tripulação de um avião em relação aos passageiros; afinal a segurança de todos a bordo depende disso. Entretanto, atualmente, mesmo em países onde deveria prevalecer o estado de direito, tem sido cada vez mais comum às pessoas se rebelarem e agirem conscientemente contra leis coletivas estabelecidas e, ainda mais bizarro, se submeterem docilmente a figuras públicas controversas, quando não danosas em diversas áreas. Tudo, é claro, através de fantasias impulsionadas pelas redes sociais. Parece um retorno coletivo à primeiríssima infância e aos extremos do conforto mental, seja impondo vontades ou se submetendo docilmente aos delírios alheios.  De um modo ou de outro esses extremos prejudicam o coletivo. Para buscar o saneamento racional, é fundamental o  conhecimento, como no cérebro, mas isso não é suficiente. Não basta aos cidadãos uma educação formativa, de conteúdo, e o acesso às informações. A efetiva colaboração coletiva depende muito de vivências democráticas, imperfeitas, sim, mas evolutivas. Os desequilíbrios atuais do planeta, naturais ou criados pelos seres humanos, são ainda mais abrangentes. O contágio se  torna cada vez mais imediato e global. O exemplo democrático do nosso cérebro deveria nos inspirar e motivar para enfrentarmos solidariamente esses desafios globais.  Seria, por acaso, mais cômodo apenas destilar ódio contra qualquer coisa ? Ou, no noutro extremo,  nos submeter aos devaneios de algum multibilionário que pretende escolher alguns genes para enviar à Marte enquanto todos os demais serão abandonados aqui, na Terra, na nossa nave mãe cada vez menos azul ?

Crônica de Carlos Lopes 

publicada no Correio Popular em 17 de outubro 2023