A criatura, as vezes, só cria a dor.

Máquinas são meios de se fazer algo com mais eficiência. O ser humano desenvolveu, desde as rudimentares ferramentas de pedra, nos primórdios dos nossos ancestrais, passando pela invenção genial da roda, os equipamentos para a agricultura e até os atuais carros autônomos guiados pela inteligência artificial. Os usuários desejam apenas que essas traquitanas funcionem adequada e facilmente. No entanto, o caminho percorrido pelos criadores sempre foi longo e árduo. Quem projeta deve conhecer as ciências naturais, vislumbrar soluções viáveis, materializá-las e suportar todas as provas de realidade e os diversos fracassos. Quando eu terminei o curso de engenharia, há 45 anos,  julgava estar preparado para criar máquinas, tanto assim que consegui trabalho numa empresa do ramo. Os primeiros dias do ofício me revelaram a minha ingenuidade de então. Naquela época, os desenhos eram feitos à mão em grandes pranchetas e acabados com tinta nanquim sobre papel vegetal, relativamente espesso e translúcido. Esses originais permitiam se fazer cópias heliográficas. Encantado pelo ambiente, fui surpreendido quando meu superior me passou o primeiro trabalho: entregou uma lâmina de barbear e indicou uma pilha de desenhos já feitos. Explicou-me, então, que eu deveria raspar a tinta das partes marcadas a lápis, pois precisavam de correção. Incrédulo, passei uma fita adesiva numa parte da lâmina, para me proteger, e me apliquei como pude. Muitos desenhos foram danificados até eu conseguir finalmente retirar a tinta sem rasgar o tal papel. Inconformado, minha jovem arrogância me perguntava se um engenheiro deveria se rebaixar tanto.  Anos depois, confesso, quando eu já criava sozinho máquinas complexas, as quais exigem muita imaginação e técnica, dei-me conta que aquela provação inicial era o primeiro degrau de um longo e necessário aprendizado: é preciso saber reconhecer os erros e corrigi-los antes de se atrever a projetar. Não bastam conhecimentos, é preciso muita vivência, seja para se viabilizar uma máquina, um novo processo e até uma sociedade melhor. Destruir é fácil, como foi furar o papel vegetal; difícil é retirar apenas o nanquim. Convenhamos, até os nefastos armamentos sofisticados passam por longos períodos de desenvolvimento para serem produzidos. No entanto, sua ação tenebrosa de destruição se dá em fração de segundos. Pessoas são dizimadas ou mutiladas, prédios virão pó. Também nas guerras virtuais, testemunhamos o colapso de relacionamentos humanos, pois as chamadas “fake-news”, eméritas destruidoras da verdade, são criadas, acreditadas e disseminadas com muita facilidade. Uma boa reputação demora anos para ser construída, mas bastam alguns instantes de perversidade alheia para destruí-la, ainda mais agora com a multiplicação dos bits via redes sociais. Mesmo em assuntos mais básicos, essa lógica se sustenta, pois cuidar do meio ambiente, alimentar seres vivos, educar os jovens e até manter as ruas limpas é bem mais complexo do que o contrário. Recorro, como ilustração, a uma cena brilhante do filme “O todo poderoso”. Jim Carrey era um repórter de TV esgotado e culpava Deus por seus problemas. Ao persegui-Lo, para tirar satisfações, encontrou um negro, Morgan Freeman, empunhando uma vassoura e limpando um andar inteiro vazio.  Foi difícil para o repórter acreditar quem era o faxineiro, afinal aquela tarefa nunca poderia ser a de um criador, não é? A cena é uma bela e necessária metáfora. Somos usuários cruéis do universo, pródigos em usufruir e apontar falhas, mas temos muita dificuldade para organizar, criar, fazer, manter; enfim: contribuir. Afinal, para destruir, basta soltar o freio do egoísmo, da ignorância, da arrogância; e assim atropelar o bom senso, o que, muitas vezes, provoca muita dor alheia. No filme, após substituir Deus por algum tempo, o repórter se redime ao final, pois se convence que para ser admirado, bastam humildade, alguma competência e muito trabalho. Não é necessário ter os poderes do divino para se criar algum bem ao próximo.


crônica de Carlos Lopes 

publicada no Correio Popular em 27 de setembro 2023