Inocência

Taubaté é terra de Monteiro Lobato e onde Mazzaropi se consagrou com seu estúdio próprio de cinema nas redondezas da cidade. Foi lá que iniciei o então chamado “Grupo Escolar”, o que hoje são os primeiros quatro anos do ensino fundamental. Por eu ter uma saúde precária, ser menos habilidoso do que gostaria no futebol e ter mais sensibilidade artística do que desejava aquela sociedade preconceituosa, sempre tive dificuldades em fazer amizades. Um raro amigo das vizinhanças, muito criativo, gostava de me contar histórias. Ele me falou, em segredo, sobre um túnel que saía de sua casa e, atravessava a terra, alcançando o Japão. Eu desconfiei, mas como era fã do “National Kid”, um seriado japonês com heróis e vilões, e ainda não conhecia nada do planeta, embarquei no papo. Por semanas, fiquei imaginando como seria aquele tal portal, pois, a cada encontro, o menino acrescentava detalhes mais sinistros.  Não me lembro como se desfez a mentira e passei a sentir vergonha por minha ingenuidade infantil frente à precoce artimanha do farsante em criar o que agora chamamos “Fake News”. De toda severidade no trato com as crianças que recebíamos então, restou-me uma herança positiva : a inocência, muitas vezes, é usada como proteção dos relapsos, ou seja, ninguém pode aceitar como verdade narrativas sem critérios mínimos de plausibilidade, guardadas as proporções da idade. Hoje em dia, parece haver um “castelo da inocência”. Os pais protegem e adulam seus filhos com mimos e recompensas sem qualquer mérito e depois aturam quando eles se iniciam nas drogas. Aprendi e ensinei que a responsabilidade não é como um documento emitido quando se atinge a maturidade. Trata-se de um longo caminho, desde pequenos passos na infância até desafios complexos na vida adulta. Quando os responsáveis atropelam a ética e assumem tarefas dos filhos, fazendo trabalhos escolares por eles, ou aceitando comportamentos que comprometem o desenvolvimento do caráter; o suposto carinho oferecido transforma-se em vício moral . Daí, então, a inocência preguiçosa se instala, feito praga, e vai corroendo a personalidade das pessoas. Responsabilizar não significa impor castigos de forma cruel e autoritária, como era costume décadas atrás, mas, sim, acordar procedimentos racionais, incluindo metas, verificar resultados em conjunto e ter coerência entre efeitos e consequências, inclusive, quando couber, respostas legais. Desse modo, entendo eu, cabe aos pais o papel essencial de serem exemplos, os primeiros e mais importantes professores dos próprios filhos. O amor não significa uma amizade permissiva entre familiares. Por vezes, é preferível não agradar, mas fazer com que a criança e o jovem desenvolvam suas capacidades e maturidade. Uma sociedade  permissiva assimila muitas mentiras dolosas, desprovidas de lógica e ciência, ambiente ideal para a barbárie. Alegar inocência é um direito legal, mas isso não basta para justificar a falta de bom senso em avaliar conceitos obscuros e agir de forma irresponsável. O tal túnel descrito pelo meu amigo de Taubaté era como a fábula do Papai Noel, não teve qualquer consequência, mas me transtornou o suficiente. Guardadas as proporções, se eu então fosse adulto e desse crédito à farsa, eu poderia ter tomado alguma atitude insana . Exemplos não nos faltam. Tanto os criadores de “Fake News” como os “inocentes úteis” se completam, cada um com seus traumas, desejos e obsessões pessoais, e podem promover tragédias aos outros, estes, sim, inocentes vítimas. A história assim nos ensina.

Carlos Lopes

( crônica publicada no Correio Popular em 24 jan 2023)